segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Começando pelo Cinema

No cinema, pode-se classificar um filme como tendo uma narrativa linear (E tudo o vento levou) ou como tendo uma narrativa não-linear (Pulp Fiction). Uma narrativa linear significa que o filme segue uma história em particular através da sua ordem cronológica, mantendo-se portanto sempre “numa linha”. Uma narrativa não linear significa que o filme salta por várias histórias, entrançadas ou não, podendo também fazer saltos temporais. Estas duas categorias, como qualquer conceito que o ser humano usa, integram-se no que os budistas chamam de verdade convencional (samvṛtisatya). A realidade convencional é útil para pensar sobre a realidade, mas acaba por reflectir, à primeira vista, apenas uma pequena faceta do que os budistas chamam verdade última (paramārthasatya). Assim, na realidade do cinema, uma narrativa linear também salta entre várias histórias entrançadas, enquanto que uma narrativa não-linear continua, geralmente, a apresentar uma história, ainda que apresentada de um modo fragmentado. Portanto, se quisermos ser mais rigorosos, podemos talvez afirmar que a esmagadora maioria dos filmes tem uma narrativa ao mesmo tempo linear e ao mesmo tempo não-linear, mas que alguns têm uma maior percentagem de linearidade e outros de fragmentação.

Uma outra forma de ver a verdade da convivência da linearidade e da não-linearidade num contexto mais amplo da realidade é aplicar várias perspectivas distintas. Por exemplo, se tomarmos como referencial a linha no espaço do caminho que fazemos, como seres, no mundo, será claro que não há saltos nessa linha. Seguimos sempre em frente. Se tomarmos como referencial uma linha definida por uma rua, então torna-se claro que, num sem número de esquinas, virámos, e quebrámos a linearidade.

Assim, penso que se pode afirmar que, do ponto de vista último (indisputável, inabalável, eterno), para definirmos (convencionalmente) uma única coisa como “carne ou peixe”, precisaríamos de definir toda uma série de coisas acessórias (e também convencionais) que entram em relação com o objecto em questão, como cor, tamanho, origem, cheiro, peso, posição, etc. De facto, e generalizando, podemos afirmar que para definir sem margem para qualquer dúvida, um simples átomo ou partícula que tenha existido por um período mínimo de tempo, precisaríamos de uma eternidade para definir todas as variáveis acessórias que poderíamos considerar em relação com esse átomo, e de mais uma infinidade de eternidades, ou mais, para definir cada uma dessas variáveis acessórias, num ciclo, ad infinitum, que ligaria “tudo” o que existe no universo, várias vezes.

Na experiência da verdade última (paramārthasatya), a realidade é entendida como incompreensível e inexprimível enquanto que na experiência da verdade convencional (samvṛtisatya), faz-se um esforço para utilizar lógica e palavras e definir conceitos, sendo a forma de consciência que pensa a verdade convencional uma consciência mais operacional do que a que experimenta a verdade última. No entanto a verdade convencional e a sua operacionalidade baseia-se na verdade última e, por outro lado, a verdade última, para poder ser operacional, pode ter de recorrer à verdade convencional.

Podemos ainda considerar, logicamente, que a enorme interdependência que podemos estabelecer entre todas as coisas, invalida, até certo ponto, uma série de conceitos aceites quase por toda a gente, tal como a concepção de que a lógica, entre as suas várias encarnações incluindo a aristotélica, é em si um meio único e directo de chegarmos a um entendimento claro da realidade. No entanto, não deixa de ser verdade que a lógica ou outros processos mentais podem ser uma importante ferramenta na nossa compreensão (de uma parte) da realidade. Buda tem algo a dizer-nos sobre as ferramentas na sua famosa parábola da jangada da Alagaddūpama Sutta: queres fazer alguma coisa, por exemplo atravessar um rio ? Faz uma jangada e usa-a para atravessar o rio, agarra-te bem a ela para não caires. Chegaste ao fim do teu objectivo anterior e tens um novo objectivo, atravessar a montanha que fica depois do rio ? Então deita fora essa jangada que construíste, que carregá-la às costas não te vai ajudar a subir essa montanha, e pensa numa nova ferramenta. Na realidade, aplicando a lógica, chegamos à conclusão de que na verdade última há muitas coisas a que não podemos chegar pela lógica. No budismo afirma-se tradicionalmente que há 84000 portas de entrada diferentes no Dharma, mas eu acredito que haja uma infinidade delas...

Uma das coisas mais importantes a reter é que, quer na realidade última como na realidade convencional, nada é definido por si só, mas por uma série (infinita se a aplicarmos regressivamente a todos os termos da própria série) de relações com outras coisas, como entradas num dicionário que apenas remetem infinitamente para outras entradas, ou jóias que apenas reflectem outras jóias (a metáfora dada na Avataṃsaka Sūtra).

À relação de causa e efeito entre as condições que dão origem a um efeito (condições eficientes) e o próprio efeito, é no budismo, dado o nome de Pratītyasamutpāda ou “origem dependente”, ou, se envolver seres que têm a liberdade de pensar e de agir, dá-se o nome de Karma (“acção”). Também se pode dar o nome de Śūnyatā (“vazio”) quando entendemos que num efeito resultante das condições eficientes, esse efeito só possui as características provenientes dessas condições eficientes, e de mais nada de exterior (o “vazio” refere-se a este “mais nada”).

Na prática quotidiana do Budismo, tentamos avaliar todas as relações, particularmente as que envolvem seres humanos, segundo critérios éticos (usando obviamente critérios pertencentes à convencionalidade). Visa-se fortalecer e apurar as relações que sejam maioritariamente boas e destruir as relações que sejam maioritariamente más.

A um entendimento ou uma vivência da verdade última pode-se dar o nome de nirvāṇa (a libertação que é o objectivo da prática budista) e a um entendimento ou vivência da verdade convencional, saṃsāra (ou existência cíclica, neste caso, porque a mente discriminante ou que experimenta o convencional anda às voltas). O grande filósofo budista Nāgārjuna, mestre da lógica, afirmou que verdade convencional e verdade última são a mesma coisa, e que igualmente o nirvāṇa e o saṃsāra também são a mesma coisa.

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